Precisamos falar sobre Maeve Wiley

ou: Mulheres que não dominam suas próprias narrativas

A terceira temporada de Sex Education está chegando na Netflix, então, cabe aqui uma análise das narrativas estabelecidas até agora. O elenco feminino da série é forte e existem várias possibilidades de debate sobre representação e diversidade, mas a proposta é analisar uma personagem: Maeve Wiley.

Personagem feminina principal no núcleo adolescente, Wiley se apresenta como uma espécie de Bad Manic Pixie Dream Girl, o que a distancia desse caminho é a possibilidade de acompanharmos suas narrativas e pontos de vista.

Estigma de Effy Stonem

O título desse texto é uma brincadeira com a postagem mais acessada do site: Precisamos falar sobre Effy Stonem, uma vez que Maeve foi muito associada a Effy por comparações entre Skins e Sex Educationleia o post sobre isso.

A relação se deu, em especial, pelo visual meio gótico/punk moderninho e a atitude irreverente e rebelde, mas o desenvolvimento das duas é bem diferente. A principio, o background já se difere, pois, apesar das famílias problemáticas, Effy cresceu com os familiares em casa, enquanto Maeve cresceu praticamente sozinha.

Effy é mais calada e despreocupada com as consequêncisas de todas as coisas, enquanto Maeve é mais imponente e, mesmo que silenciosamente, se preocupa com o que acontece e pensa no futuro. Effy é muito esperta e Maeve é muito inteligente, diferença importante.

Skins oferece um episódio para cada personagem, já Sex Education apresenta a perspectiva de vários personagens ao longo de cada episódio, portanto, as apresentações e interpretações variam. Effy e Maeve coexistem no mesmo grupo de estereótipos, mas não são necessariamente parecidas.

Personagens femininas complexas”

Essa é uma das falas de Maeve que mais marcaram, no começo da primeira temporada, posteriormente fazendo referência a literatura feminista. Ela lê A Room of One’s Own, de Virginia Woolf, com frequência e admira Sylvia Plath, mostrando The Bell Jar dentre suas leituras e até mencionando em algumas conversas.

Referências assim são importantes para dar personalidade à personagem e isso não é algo novo, a personagem Kat de 10 Coisas que eu odeio em você (2000) apresenta traços semelhantes. Sex Education oferece mais espaço para posicionamentos firmes e explícitos, relevantes para o desenvolvimento do enredo.

Entretanto, toda essa construção é ironicamente contrastada com o fato de que Maeve, assim como muitas personagens femininas e mulheres, na vida real, não possuem controle sobre a própria história.

SPOILER DAS TEMPORADAS 1 E 2

Aqui vai uma pequena retrospectiva sobre Maeve Wiley:

Na primeira temporada, seus relacionamentos amorosos foram influenciados por mentiras e movimentações masculinas, principalmente por parte de Otis e Jackson, assim como, sua vida foi drasticamente alterada pelas atitudes de seu irmão mais velho. Na segunda temporada, muitas dessas movimentações se repetem e apresentam uma personagem fundamental: a mãe de Maeve. Embora trate-se de uma personagem feminina, seus maiores problemas são drogas e relacionamentos com homens que, indiretamente, pesam para a história. Por último e não menos importante, Isaac, o vizinho que vigia e manipula Maeve, além de apagar a mensagem de declaração de Otis.

Todas essas trajetórias apontam para o fato de que, ainda que abertamente feminista e constantemente ativa na luta pelos direitos das mulheres e afins, Maeve é uma mulher com a vida controlada por homens. O que não invalida as críticas em busca de personagens femininas complexas, muito pelo contrário, isso só a aproxima da realidade.

O que é ser mulher num sistema patriarcal se não ter sua vida, no mínimo, moldada e influenciada por homens? As próprias autoras citadas como inspirações tiveram suas possibilidades de escrita completamente relacionadas aos homens que as cercavam. Nos casos de Woolf e Plath, seus maridos tiveram grande importância e influência sobre suas carreiras, em vida e após a morte.

Muitos são os exemplos de escritoras, atrizes, cantoras e demais figuras públicas femininas famosas que tiveram suas vidas influenciada por homens. Amy Winehouse e Whitney Houston são exemplos trágicos, Britney Spears é um caso recentemente midiatizado. Nenhuma mulher conseguiu escapar completamente das influências masculinas.

Trata-se de uma reflexão de estudos de gênero e uma certa análise dos discursos diretos ou indiretos inseridos na construção de personagens como Maeve, uma adolescente que chama a atenção para as narrativas complexas muito além do que com suas citações e referências, mas, sim, com sua própria construção de personagem.

O olhar crítico com a ficção e com a realidade nos ajuda a não perpetuar a normalização das histórias de mulheres que não dominam suas próprias narrativas. Faz-se válida e muito atual a afirmação de Virginia Woolf de que uma mulher precisa de dinheiro e um teto todo dela caso queira escrever (A Room of One’s Own).

Nos resta entender que não poderemos mudar o mundo da noite pro dia, o que inclui não modificar seu funcionamento, porém, podemos – e devemos – sempre questionar e não nos acomodar. Woolf e Plath são bons exemplos disso:

“A última coisa que que eu queria da vida era ‘segurança infinita’ ou ser o ‘lugar de onde a flecha parte’. Eu queria mudança e agitação, eu queria ser uma flecha avançando em todas as direções” SYLVIA PLATH, The Bell Jar 

“Extraindo sua vida das vidas das desconhecidas que foram suas precursoras, como antes fez seu irmão, ela nascerá. Quanto a ela chegar sem essa preparação, sem esse esforço de nossa parte, sem essa certeza de que, quando nascer novamente, achará possível viver e escrever sua poesia, isso não podemos esperar, pois seria impossível. Mas afirmo que ela viria se trabalhássemos por ela, e que trabalhar assim, mesmo na pobreza e na obscuridade, vale a pena.” VIRGINIA WOOLF, A Room of One’s Own

“Respirei fundo e escutei o velho e orgulhoso som do meu coração. Eu sou, eu sou, eu sou.” SYLVIA PLATH, The Bell Jar

Espero que o desenrolar de Maeve apresente mais possibilidades de que a personagem encontre seu próprio espaço e, especialmente, tenha controle sobre ele. Para além da série, espero que possamos tomar controle de nossas histórias. E ser, ser, ser.

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